quarta-feira, 27 de junho de 2018

Opinião: Quem Teme a Morte

Título Original: Who Fears Death (2010)
Autor: Nnedi Okorafor
Tradução: Teresa Martins Carvalho
ISBN: 9789896655471
Editora: Saída de Emergência (2018)

Sinopse:

Num futuro distante, um holocausto nuclear devasta o continente africano e dá-se um genocídio numa das suas regiões. Os agressores, os Nuru, de pele mais clara, decidiram seguir o Grande Livro e exterminar os Okoke, de pele mais escura. Mas, depois de ser violada, a única sobrevivente de uma aldeia Okoke consegue escapar e refugiar-se no deserto. Dá à luz uma rapariga com cabelo e pele cor de areia e a mãe percebe, nesse momento, que a sua filha é diferente. Dá-lhe o nome de Onyesonwu, que significa “Quem Teme a Morte?”.

Treinada por um misterioso xamã, Onyesonwu sabe que tem um destino mágico a cumprir: pôr fim ao genocídio do seu povo. A jornada para cumprir tal proeza irá pô-la em confronto com a natureza, a tradição, o amor verdadeiro, os mistérios da sua cultura… e, por fim, com a própria morte.

Opinião:

Como fã de Fantasia, claro que fiquei entusiasmada quando soube que Quem Teme a Morte, livro vencedor do World Fantasy Award, ia ser publicado em Portugal. Afinal, tinha desejo de conhecer esta história que chamou atenções dentro do género. Com as expectativas elevadas quanto a esta obra de Nnedi Okorafor, foi com surpresa que me deparei com uma narrativa original e cativante desde a primeira página.

Assim que comecei a ler senti que estava a ser transportada para um ambiente diferente. A autora leva-nos para a África num mundo pós-apocalíptico. Contudo, é interessante perceber que estamos a falar de uma ideia de futuro apenas quando alguns dispositivos tecnológicos surgem, pois tudo o resto indica uma nova realidade baseada em regimes tribais ou cidades pouco desenvolvidas. Como tal, as descrições relativas à sociedade são sempre cruas, com a autora a maravilhar-nos pelas descrições culturais e a deixar-nos em choque com questões relativas aos mais diferentes tipos de preconceito.

Onyesonwu é a protagonista desta aventura. Conhecemos a sua história desde o momento da concepção, sendo incrível perceber como uma experiência tão violenta e traumatizante acabou por gerar como fruto um ser humano tão incrível. Onyesonwu é uma menina que cresce revoltada pela reacção dos outros ao facto de ser Ewu, isto é, uma mestiça, produto da união forçada entre um homem e uma mulher de raças diferentes. Assim, além da sua condição de mulher, que já por si acarreta inferioridade, esta heroína é ainda uma renegada devido a mais um factor sobre o qual não tem opção de escolha. É impressionante como ela encara tal ao longo da vida, num misto de revolta contra a sociedade, a necessidade de aceitação pelos outros e a carência de reconhecimento pelo valor daquilo sobre o qual tem realmente controlo.

Esta protagonista é uma personagem carismática. Com as suas qualidades e defeitos, Onyesonwu consegue conquistar. As suas capacidades únicas vão evoluindo com o passar das páginas e impressionam por serem tão únicas e por nos fazerem acreditar num salvador que tem como destino fazer a diferença num mundo perdido. Curiosamente, as suas fraquezas fazem dela uma humana que se distingue dos outros pela garra e pela coragem de se superar, caindo as vezes que forem necessárias para fazer com que outros não sofram o que ela e os que mais ama sofreram.

Nem sempre é fácil perceber todas as capacidades de Onyesonwu. Os seus poderes incríveis vão evoluindo de forma gradual, nem sempre evidentes. Não estamos a falar das capacidades exploradas em tantas outras histórias, mas sim noutras que nos fazem pensar sobre as diferentes ligações que existem no nosso mundo, mas também entre realidades que vão para além da nossa compreensão. Gostei que a autora não fizesse deste factor algo apenas negativo, explorando ainda os sacrifícios necessários para se conseguir tal poder e ainda as consequências de actos irreflectidos ou desesperados.

Ao longo da história de Onyesonwu a autora explora temas que causam impacto no leitor por se tratarem de assuntos atuais. A questão da discriminação racial é muito forte neste universo marcado pela luta entre dois povos que se regem por um livro sagrado que dita a superioridade de um em detrimento de outro. O papel da mulher é analisado, sendo interessante verificar como este muda nas diferentes cidades ou tribos com as quais a protagonista contacta, apesar de a ideia de submissão acabar por estar sempre presente. A mutiliação genital feminina como componente cultural que é aceite sem que se tenha em causa a forma como irá afectar a saúde e o futuro de uma mulher. O medo do desconhecido que provoca rejeição e violência.

Quem Teme a Morte revelou-e uma leitura que superou as altas expectativas que inicialmente tinha. Apesar de algumas decisões da autora me terem custado um pouco a aceitar, reconheço que esta é uma obra que merece destaque por marcar a diferença dentro de um género que tanto admiro. Um livro que não só entretém como ainda tenta despertar consciências para o que se pode fazer nos nossos dias a nível das comunidades para a integração, respeito e igualdade. Recomendo.

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