segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Opinião: Quarenta Dias Sem Sombra

Título Original: Le Dernier Lapon (2014)
Autor: Olivier Truc
Tradução: Mário Dias Correia
ISBN: 9789897770180
Editora: Planeta (2018)

Sinopse:

Kautokeino, Lapónia Central, 10 de Janeiro. Noite polar, frio glacial. Amanhã o Sol, desaparecido há quarenta dias, vai renascer. Amanhã, entre as 11h14m e 11h41m, Klemet voltará a ser um homem, com uma sombra. Amanhã, o Centro Cultural vai expor um tambor de xamã oferecido por um companheiro de Paul-Émile Victor.
Mas o tambor é roubado durante a noite. As suspeitas irão desde os fundamentalistas protestantes aos independentistas samis. A morte de um criador de renas não contribui para melhorar a situação. A Lapónia, na aparência tão tranquila, vai revelar-se uma terra de conflitos, de cóleras e de mistérios. Klemet, o lapão, e Nina, a jovem colega de equipa, agentes de polícia das renas, lançam-se numa investigação frustrante. Mas, em Kautokeino, ninguém gosta de quem faz ondas. Ordenam-lhes que voltem às patrulhas de motoneve pela tundra e à pacificação das eternas querelas entre criadores de renas.
Os mistérios do 72.º tambor vão alcançá-los. Porque confiou, em 1939, um dos guias samis à expedição francesa aquele tambor? De que mensagem era portador? Que contam os joïks tradicionais que o velho tio de Klemet canta? Que vem fazer à aldeia aquele francês que gosta demasiado de raparigas muito novas e que parece conhecer tão bem a geologia da região? A quem se dirigem as orações da piedosa Berit? Que esconde a beleza selvagem de Aslak, que vive à margem do mundo moderno com a sua mulher meio louco?

Opinião:

Existem livros que me chegam às mãos e que começo a ler sem expetativas. Foi o que aconteceu com este Quarenta Dias Sem Sombra. Não conhecia o autor, nunca tinha lido uma história que acontecesse na Lapónia e desconhecia os sami, povo étnico desta região nórdica. O que, então, me poderia cativar nesta obra? A resposta foi surgindo com o decorrer da leitura: praticamente tudo! Estava perante uma grande surpresa, um livro que me tirou o sono, obrigando a ler pela noite dentro.

A primeira sensação que fica é que somos realmente transportados para a Lapónia ao ler este livro. Apesar do calor do verão que atualmente se faz sentir, tremi com o frio do fim do inverno, visualizei perfeitamente a tundra coberta de neve, senti-me perdida na escuridão que ocupa quase 24 horas, ouvi o silêncio apenas quebrado pelo vento e pelas renas a pastarem. Este é um ambiente incrível e pouco conhecido, mas que surge como o cenário perfeito para um thriller que não nos larga.

As personagens são intrigantes e deixam perceber uma construção cuidada. Klemet, que surge como protagonista, é um polícia de renas (conheciam tal profissão? Existe mesmo! Já explico melhor do que se trata). Klemet é sami e tem uma personalidade muito fechada. Logo ao início percebe-se que se protege de algo, deixando a ideia de que já sofreu de discriminação, tendo optado por uma postura mais reservada. Apesar de uma aparência conformada, sente-se um fogo latente que poderá impulsioná-lo. Ao início, ele só se revela minimamente quando está a desempenhar funções e a mediar conflitos entre criadores de renas. Aqui sentimos a sua compaixão e o seu coração.

Existe ainda uma personagem que funciona como coprotagonista desta história. Trata-se de Nina, uma jovem originária do sul da Suécia. Por ser nova da Lapónia, é através de Nina que o leitor vai entendo este local, os seus povos e a forma como tudo funciona. Esta foi uma das personagens com a qual senti maior empatia. É que, tal como ela, fiquei intrigada pelos sami e procurei saber mais sobre eles, senti choque por ser tratada como inferior por ser mulher, fiquei indignada pelas faltas de respeito perpetuadas por personagens intolerantes, desejei descobrir a verdade sobre os crimes que aconteceram.

Nesta aventura, existem dois mistérios a serem resolvidos: um roubo e um assassinato. Ambos remetem para a cultura sami e levam-nos a descobrir melhor este povo. É impressionante perceber que existem realmente pessoas que vivem em território inóspito e que têm como principal função criar renas. Os conflitos entre criadores são baseados em factos verídicos e explicam-se pelo facto de o gelo prejudicar o acesso dos animais a alimento, o que o faz procurar noutros locais e invadir território atribuído a outro criador. É aqui que entra a polícia das renas. Esta força de segurança tem a função de mediar todos os problemas e conflitos provocados pela criação destes animais. E acreditem, deu para perceber que não se trata de uma tarefa simples.

O desenrolar da ação está construído de forma a agarrar sempre o leitor. É verdade que existem momentos mais parados, morosos e descritivos, mas tal não me prejudicou a leitura. Pois são esses mesmos momentos que me permitiram realmente sentir que estava no espaço descrito e que me fizeram conhecer melhor os sami. Os crimes não acontecem por acaso e fazem sentido na história que o autor quer contar. As personagens secundárias completam este quadro e fazem-nos acreditar que esta história poderia mesmo acontecer.

No leque de personagens secundárias, encontramos diferentes situações. Destaco as figuras preconceituosas, que nos chocam e causam revolta, quer seja pela forma como tratam os outros como pelo desrespeito pelo próximo de forma a se obter poder ou dinheiro. As personagens femininas têm um grande peso, até porque todas elas evidenciam uma história de assédio ou abuso, o que representa uma situação bastante real, especialmente numa região dominada pelo machismo, mas que muitas vezes é abafada. Por último, quero salientar aqueles que estão ligados à forma mais tradicional da cultura sami, ainda que por diferentes formas, como é o caso de Aslak e Nils Ante.

Olivier Truc surpreendeu-me com Quarenta Dias Sem Sombra. Este consegue entreter, instruir e ainda servir como chamada de atenção. O autor faz-nos refletir sobre uma cultura que está em perigo de desaparecer por ser constantemente desprezada. Desinteresse, discriminação, incompreensão, interesses económicos e alterações climáticas são alguns dos aspetos que estão em cima da mesa e devem ser analisados. Este é o primeiro livro de uma saga, mas pode ser lido em separado e sem necessidade de se ler o próximo para compreender a trama. Ainda assim, anseio para que o segundo volume seja publicado. Vou querer ler.


Nota: No dia 13 deste mês, tive a oportunidade de participar num encontro de bloggers com Olivier Truc, promovido pela Planeta. Foi uma oportunidade incrível. Já tinha lido o livro e estava muito curiosa sobre certos pontos, sobre os quais o autor falou abertamente. Foi impressionante perceber como um jornalista francês, que está a viver na Suécia, se apaixonou pelo sami. Olivier Truc falou deles como amigos, uma vez que os visita com regularidade. Garantiu que mais do que contar uma história, queria dar voz a um povo que, regra geral é esquecido ou considerando inferior, mesmo dentro do próprio país. Como tal, quando o livro foi publicado, foi com surpresa que recebeu os elogios da crítica, que aplaudiu a obra e a nomeou para diversos prémios.
Olivier Truc é um autor muito simpático, com talento para a arte de contar histórias e com coragem para colocar o dedo na ferida. Um homem com coragem de participar em patrulhas com a polícia das renas, mesmo quando uma tempestade se aproxima. Uma pessoa que quer mostrar que os países nórdicos, considerados exemplares, também têm graves falhas que precisam de ser corrigidas. Foi um prazer conhecê-lo. Obrigada Planeta.


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